sexta-feira, julho 08, 2005

O show de despedida dos Almôndegas


Parece que foi ontem que os Almôndegas fizeram seus dois shows oficiais de despedida no Salão de Atos da UFRGS em 1979. Eu fui na primeira noite. Lembro bem que o primeiro a entrar foi o baterista Fernando Pezão, coringa do pop gaúcho que já tocou com praticamente todo o mundo e hoje está nos Papas da Língua. Pezão entrou de capote e, se não me engano, capuz, assumiu seu lugar na bateria e começou a bater nos tambores espaçadamente à medida que os demais "encapuzados" iam entrando, de um em um. O baterista nunca chegou a participar de nenhum disco dos Almôndegas, mas os acompanhou neste show como convidado (e depois novamente no show de 15 anos em 1990 no L’Atmosphere). A formação do grupo era: Kleiton, Kledir, João Batista e Zé Flávio.


O show tinha um roteiro. Em determinado momento, cada integrante era apresentado por uma gravação, enquanto ficava sentado num banco alto bem sério e imóvel, com um facho de luz por cima. Havia também vários momentos em que Zé Flávio recitava: "Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste / Criança: não verás outro país como este." Kleiton emendava: "Lá vêm as caravelas das praias de Portugal / Na maior de todas elas, Pedro Álvares Cabral". Esse trecho era repetido várias vezes e, em algumas delas, Kleiton tapava o nariz e fazia voz fanha quando dizia "Pedro Álvares Cabral". "Amor Caipira e Trouxa das Minas Gerais" foi apresentada numa versão sem bateria e sem repetição de versos. "Vento Negro" foi cantada por Kledir, já que o vocalista da gravação original, Quico Castro Neves, havia saído do grupo no final de 1976. Em "Harmonia", Kledir errou a letra: quando deveria cantar "meu coração é um rio correndo pra ser feliz", atrapalhou-se com a estrofe anterior, cantou "teus olhos", percebeu o erro e parou. Kleiton veio em seu socorro: largou a flauta, cantou "são rios" e Kledir completou: "correndo pra ser feliz". Também em "Circo de Marionetes", na segunda estrofe em que todos deveriam cantar que o coração "se agita", alguns repetiram a primeira parte e disseram "palpita".

Todos esses comentários eu coloquei na comunidade dos Almôndegas no Orkut. Aí, para minha surpresa, uma das integrantes – Glorinha, a quem já considero uma amiga, embora virtual – disse que tinha esse show gravado em cassete, com microfone. Não acreditei. Pedi cópia na hora e ela não se fez de rogada. Mesmo morando em Santa Catarina, providenciou as fitas e as colocou no correio. Ontem à noite eu dei uma escutada. Pude perceber, com certeza, que ela gravou o show da segunda noite e não o da primeira, onde eu estava. Ora, se eu lembro até dos erros, não esqueceria se eles tivessem incluído músicas novas no repertório. Pois foi exatamente isso que fizeram no segundo show. Eles cantam uma inédita no começo, uma versão rapidinha de "Gatinha Manhosa" (antes, bem antes de Leo Jaime a redescobrir), "Bandeira do Divino", um trecho de "Em Mar Aberto", de Fernando Ribeiro, antes de "Circo de Marionetes", e ao final tocam uma longa composição instrumental que depois seria gravada por Kleiton e Kledir como "Couvert Artístico". Mas nesse show a música era bem mais extensa, cheia de variações, e tinha uma participação marcante de Zé Flávio na guitarra. Pelo que pude ouvir, o ex-integrante Pery Souza é chamado ao palco para participar nessa execução. Isso não aconteceu no primeiro show. Também não houve o erro em "Harmonia", mas eles se atrapalharam de novo no final de "Circo de Marionetes".

É curioso que, 26 anos depois, eu ainda lembro de detalhes dos textos do roteiro. Nunca esqueci a forma como João Batista foi apresentado. Enquanto o facho de luz pairava sobre ele, a voz dizia: "João... Batista. Baaaaaaaaah! Esse não precisa nem dar titulação!" Kledir foi anunciado como "ex-integrante do PC – Piquete do Caveira!" Esses trechos eu não esqueci, mas não imaginava que iria escutar de novo. Continuo achando que uma das invenções mais fantásticas de todos os tempos é o gravador. Foi um dos melhores presentes de Natal que ganhei na infância. Também gravei alguns shows e festivais com microfone, mas burramente eu desligava entre uma música e outra. A Glorinha gravou tudo e preservou um momento histórico.

Depois, o crítico de música Juarez Fonseca fez um comentário na Zero Hora que era um verdadeiro manifesto a favor da saída dos músicos gaúchos para o centro do país, olha aí o exemplo dos Almôndegas que amadureceram e blá blá blá. Anos depois ele aconselhava Bebeto Alves a não se mudar de vez para o Rio porque "o Rio tira mais do que dá, os artistas vão perdendo sua identidade sem perceber..." Seria o caso de saber hoje onde o Juarez recomenda que os gaúchos se estabeleçam.