terça-feira, agosto 16, 2005

O dia em que eu defendi o Collor

A crise política do governo e o depoimento de Collor no Fantástico me fizeram lembrar de um episódio do tempo da Faculdade de Jornalismo. Foi em 1992, na disciplina de Cinema. O professor era Carlos Gerbase, já na época um destacado cineasta. Havíamos decidido fazer um vídeo focalizando dois programas de rádio em que os ouvintes participassem por telefone. Um deles seria o de Jayme Copstein, na Rádio Gaúcha, na madrugada. O outro escolhido foi o Talk Radio, na Ipanema FM, apresentado por Kátia Suman das 10 às 11 da noite, inspirado pelo filme homônimo. Mas, para ficar mais divertido, ligaríamos para os programas tentando provocar algum assunto polêmico. No caso do de Jayme Copstein, um colega telefonou se dizendo vigia abandonado pela mulher e pedindo aconselhamento ao advogado convidado Dr. Flor Édson. Mas para o Talk Radio, programa de sucesso na época, queríamos preparar algo especial.

Quem deu a idéia foi o próprio Gerbase. “Que tal alguém defendendo o Collor?” O impeachment era recente e nada podia ser mais sui generis do que um jovem manifestando seu apoio ao Presidente recém-afastado, cuja popularidade estava no fundo do poço. E logo em Porto Alegre, onde o neto do gaúcho Lindolfo Collor sempre foi visto como persona non grata, mesmo durante a campanha que o elegeria. A proposta foi aceita, mas quem iria levá-la a cabo? Pensávamos no colega Celso Santana, que era também ator e se destacava por sua personalidade irreverente e criativa. Mas ele não se entusiasmou muito. Disse que não sabia o que iria falar. Comecei a dar sugestões sobre as argumentações que ele poderia fazer e notei que os olhares dos colegas se voltaram para mim com interesse. Apesar da minha notória timidez, acabei admitindo que, se alguém teria condições de interpretar esse papel, seria eu mesmo.

No dia marcado, Gerbase e um grupo de alunos compareceram ao estúdio da Ipanema para gravar em vídeo uma edição do Talk Radio. A locutora Kátia Suman já estava avisada. Mas o que ela não sabia é que, na casa de uma de nossas colegas, a outra metade do grupo estava reunida, também com equipamento de vídeo, para ligar para o programa. Assumi minha posição ao telefone e, talvez por sorte, não tive dificuldade de conseguir ligação. Fui o segundo a falar.

Depois de tudo pronto, vivi a rara experiência de ver em vídeo os dois lados de uma conversa telefônica da qual eu havia participado. Tivemos alguns problemas no geral e não conseguimos terminar o trabalho como gostaríamos. Ao tentar achar algo de positivo para dizer sobre o resultado, Gerbase elogiou minha interpretação, disse que eu realmente parecia estar convicto de meus argumentos. Não sei se fiquei orgulhoso, mas o fato é que eu havia sido escolhido para a tarefa exatamente por ter uma voz grave e formal, típica de um “Mauricinho” que votaria em Collor. Quanto ao que eu falei, foi tão convincente que até hoje há quem ache que eu aproveitei a brincadeira para dizer o que eu realmente pensava. Mas não foi bem assim.

Na semana em que o impeachment foi votado, o jornalista Juarez Fonseca publicou um comentário na Zero Hora que dizia que era preciso evitar a carnavalização dos acontecimentos. E era o que eu pensava. O fato de o primeiro Presidente eleito pelo povo após 20 anos de ditadura estar saindo antes do fim do mandato não era motivo para festa. Pelo contrário: eu fiquei apreensivo. Tinha convicção de que Collor estava caindo por falta de apoio político, apenas isso. O povo foi somente a claque. Cheguei a temer alguma manobra oportunista que, felizmente, não aconteceu. Ao fazer minha defesa de Collor no rádio, essa foi uma de minhas linhas de argumentação. De resto, não foi difícil supor o que um simpatizante do ex-Presidente pensaria naquela situação. Sempre tive facilidade de me imaginar nos dois lados de uma discussão e usei isso em minha encenação.

E assim, misturando mentira com verdade, apresentei-me como um jovem de 26 anos (já estava com 31) chamado Rogério, que havia votado em Collor no segundo turno (votei em Lula no segundo e Brizola no primeiro), que achava que a degradação da imagem de Collor era conseqüência de manipulação da imprensa, que o impeachment havia sido pretexto para o povo fazer festa sem realmente perceber a gravidade do que estava acontecendo, que Itamar Franco era uma “água morna” e que Collor só não fez mais coisas boas porque não lhe deram condições. A intenção foi atingida: Kátia ficou impressionada com o que ouviu. Pedia que eu apresentasse mais argumentos, “quero te ouvir mais”, e eu me sentia acuado, não via a hora de a conversa terminar. Depois que desliguei o telefone, estava me sentindo mal. Havia mentido bem demais. E se surgisse em Porto Alegre um movimento jovem pró-Collor motivado por esse tal Rogério de 26 anos?

O roteiro original previa que eu iria até a Ipanema para me encontrar com a Kátia e revelar o trote. Isso seria registrado em vídeo, também. Mas acabei me perdendo, não encontrando o caminho para a rádio a tempo, e com isso até hoje não sei se ela chegou a ser avisada de que foi tudo armação. Depois disso, participei de cinco “Clubes do Ouvinte”, na Ipanema, falei pessoalmente com a Kátia, mas nunca contei que aquele ouvinte “collorido” que havia ligado para o Talk Radio era eu.