quarta-feira, setembro 21, 2005

O ouvinte sofredor

(Publicado originalmente no International Magazine nº 41, de outubro de 1997.)

Ser fanático por música tem suas vantagens. Quem é louco por futebol, por exemplo, fica à mercê da sorte. Só festeja quando o seu time vence. Quando tem que amargar uma derrota, chega em casa de mau humor, não fala com ninguém e passa uma semana resmungando táticas e fórmulas mágicas para salvar a equipe do seu coração. Também o aficcionado por política vive em função de números, pesquisas, primeiro turno. Alguns nem dormem direito. Música é outra história. Tudo é festa. Ou não? Bem... A verdade é que existem fanáticos por música que conseguem adotar posturas um tanto exageradas. Colocam-se na posição de eventualmente se sentirem derrotados. Aí, tornam-se autênticos “ouvintes sofredores”.

Tem gente, por exemplo, que acha vantagem o seu grupo ou cantor preferido estar no topo das paradas. Se for muito ingênuo, pode incomodar bastante. É como aquela garota de 16 aninhos que vem encher o saco para mostrar que as Spice Girls estão em primeiro lugar enquanto o seu grupo preferido está lá em baixo. Por outro lado, quando as Spice Girls sumirem do mapa, ela vai entrar em crise existencial. Ou é mais provável que já tenha um novo ídolo. Escolhido nas paradas, é claro. Existe uma variação, que é o fã que não aceita que os outros não gostem do que ele gosta. Esse vira alvo de gozação fácil, fácil. Chega em casa bufando, a mãe pergunta o que houve e ele responde: “Meus colegas disseram que o U2 é uma droga, que o Bono Vox não canta nada e ainda por cima é veado! Como eles podem saber? Eles disseram que grupo bom mesmo é o Oasis. Vão tomar...”

Colecionar discos no Brasil traz um problema. Num país de primeiro mundo, já se sabe que itens de coleção não se emprestam, portanto nem se pedem. Aqui é diferente. As únicas coisas que os nativos da Terra Brasilis conseguem entender como valioso são automóvel e imóvel. Basta ver que são as únicas que se colocam no seguro. De resto, o que mais você tiver em casa tem que ser seu e dos amigos. Do contrário, você se torna o excêntrico, o avarento, o sovina. Sua fama se espalha rápido entre colegas e parentes: “Fulano, o que não empresta discos.” Aos olhos dos leigos, aquele CD raríssimo que você conseguiu do Japão por 50 dólares é apenas um disquinho igual a tantos outros que se vêem de balaio nas Casas da Banha. Em pouco tempo você se vê obrigado a não mais dividir com os parceiros a alegria de ter conseguido mais uma preciosidade para sua coleção. Alguém liga e pergunta: “Algum disco novo?” Você está louco pra contar, mas temendo um constrangedor “me empresta?”, diz apenas: “Não...Faz tempo que não compro nada...”

Existe um caso pior, que é o do que não só não empresta, mas não quer que os outros tenham o que ele tem. Em outras palavras, o que compete com outros colecionadores para ver quem junta mais discos. Num primeiro momento, o vitorioso resolve coroar seu êxito fazendo uma lista de seus discos e vídeos para oferecer gravações. É uma forma de exibir sua coleção, além de faturar um extra para ampliar o acervo. Só tarde demais ele percebe o óbvio: se outros comprarem gravações dele, terão o que ele tem. Vem a paranóia. Seus vídeos raríssimos começam a aparecer nas listas de outros. Ele liga para um suspeito: “Fulano, foi você quem gravou o Live at Budokan para o Beltrano? Por que você fez isso??? Como assim, não tem problema? Claro que tem!!!”

Muda a tática. Os itens mais raros já não entram na lista. São oferecidos somente a quem tiver algo realmente valioso para troca. Mas sempre com a recomendação: “Não conte para o Fulano.” E o Beltrano sai todo feliz, sem saber que no dia anterior o Fulano levou outra gravação rara com a recomendação: “Não conte para o Beltrano”. Em pouco tempo, o colecionador não faz mais listas. Diz que não tem mais nada, mas os amigos pressionam. À noite, ele tem pesadelos. Sonha que uma multidão de fãs do mesmo ídolo vem bater à sua porta. Querem ver sua coleção. São muitos, acabam entrando à força. Um abre seu armário, outro descobre sua gaveta secreta. Aos gritos de “você não me falou que tinha isso”, todos caem ávidos sobre seus mais preciosos vídeos e CDs. Ele acorda ofegante e vai correndo conferir a gaveta. Está tudo lá. Chaveia a gaveta e esconde a chave no alto de um armário.

Tem também o fã que fica nervoso quando o ídolo fica muito tempo sem lançar disco. Claro que nem todos têm esse problema. Roberto Carlos, por exemplo, nunca deixou seu público na mão. Mas se o assunto é Michael Jackson, Kraftwerk ou Pink Floyd, a crise de abstinência é inevitável. O colecionador sofre a cada ano. “Neste ano deve sair disco. Claro que vai, pense bem, ele já está há três anos sem lançar nada. Não iria deixar passar tanto tempo. Neste ano sai, sim”, diz ele, mais para convencer a si mesmo do que a qualquer outra pessoa. Mas chega setembro e nada. “Claro, vai sair no Natal. É óbvio, é a melhor época para sair disco. Só pode ser. Tem que ser.” Novembro passa sem nenhuma notícia. “Vai sair de última hora, de surpresa. É isso! Vai, vai mesmo, eu acho que vai!” O calendário marca 25 de dezembro e nada. “Deve ter saído hoje no exterior, vai demorar um pouco para chagar aqui.” Na noite de Ano Novo, enquanto a família comemora e se prepara para o reveillon, nosso amigo já está caído num canto, agarrado a uma garrafa de champanhe, falando sozinho: “Neste ano sai... Neste ano sai...”

A história não terminou. Um dia, o novo disco é finalmente anunciado. Os amigos do colecionador pensam que desta vez ele vai ficar mais calmo. Mas aí mesmo é que ele se inquieta. Enquanto o disco não aparece, ele visita as lojas todos os dias, além de ligar repetidas vezes para a gravadora, para os jornais, rádios, amigos, quem puder dar uma notícia. Finalmente, o disco é lançado. “E agora, quando sai o primeiro single?” Mais espera, mais ansiedade. Sai o single. “E o segundo single?” Começa tudo de novo. “E a turnê? E o disco pirata?” Quando terminar o ciclo ele estará novamente ansiando pelo próximo disco. Um dia, acontece uma tragédia. A família fica sabendo primeiro e teme por sua reação. Chama-o para um canto, pede que se acalme e revela que seu grande ídolo acaba de falecer. Ele dá um pulo: “Vivaaaa!!! Agora vão lançar todas as gravações inéditas!!!!”