quarta-feira, outubro 19, 2005

Nei Lisboa e os anos 80

Quando a gente é fanático por música, uma simples citação ou lembrança já pode dar uma vontade danada de ouvir um determinado disco. Pois lá no Orkut, na comunidade do músico gaúcho Nei Lisboa, um participante perguntou se alguma música do Nei lembrava alguém ou alguma época. Respondi que o primeiro LP, "Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina", me fazia recordar de uma época legal da minha vida. Mas foi só terminar de escrever e fui correndo catar meus CDs do Nei. E ele já está cantando em minhas caixinhas de som do computador: "Eu visito estrelas..."

Pensando bem, acho que tenho sido injusto com os anos 80. Costumo citar a década de 70 como a minha preferida, por ter sido a de minha adolescência por isso mesmo a mais longa e marcante, mas muita coisa legal aconteceu nos anos 80. Na música, Nei Lisboa foi talvez a melhor delas. Lembro dele no Musipuc de 1980, magrinho e de barba, cantando "Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina" e a linda "Doody II". Ele entrou no palco segurando dois "toquinhos" na mão, batendo-o um contra o outro próximo ao microfone e dizendo: "Som... de raízes..." E jogou os dois pedacinhos de raízes para a platéia, num deboche ao que a crítica dizia de seu trabalho. No festival do ano seguinte ele concorreria com "Não Me Pergunte a Hora". Enquanto preparava os instrumentos, sussurrou com zombaria: "Adoro vocês..." E completou: "O júri é tão simpático..."

Ainda em 1980, na época do primeiro festival mencionado, Nei, Boina e Augustinho Licks apresentavam o show "Verde", no Círculo Social Israelita. Eu e um amigo fomos ver. Ainda tenho o programa guardado. Revendo as músicas, constatei que a letra original de "Verdes Anos" falava na verdade em "13 anos". E "Paisagem Campestre" era cantada por Augustinho, que depois entraria para os Engenheiros do Hawaii. Nei só lançaria o primeiro LP em 1983 e lá estariam as três músicas citadas dos dois Musipucs.

Casualmente eu estava diante da TV assistindo ao programa "Pra Começo de Conversa", na TVE, no dia em que Nei fez uma afirmação que entraria para a história. Uma turma de artistas e agitadores culturais discutia a questão das multinacionais. Sentado no chão do estúdio, mais zen do que nunca, Nei sentenciou: "Eu acho que a terra é redonda... Eu, por exemplo, estou louco que uma multinacional se apaixone por mim... E de repente eu poderia abrir minhas pernas pra uma multinacional... Mas ela teria que gozar, gostar e querer de novo." Minha mãe estava comigo e ficou chocada com a imagem usada pelo músico. Depois disso a fala de Nei foi citada inúmeras vezes, nem sempre de forma correta. Mas eu ouvi e lembro bem.

A multinacional para a qual Nei viria a "abrir as pernas" seria a EMI. O LP "Carecas da Jamaica", lançado em 1987, tinha tudo para estourar e transformar o músico gaúcho em ídolo nacional. Nada contra os demais, cada disco de Nei Lisboa é genial à sua maneira. Mas existem trabalhos que já nascem com gosto de "sucesso merecido" e "Carecas da Jamaica" é um deles. Infelizmente, não emplacou como poderia, exceto, é claro, no Rio Grande do Sul. "Verão em Calcutá" era o hit óbvio, mas praticamente todas as faixas tinham apelo e qualidade para tocar no rádio, da doçura de "Maracujás" ao peso Walterfranquiano de "Declaração", parceria de Mutuca com Nei Duclós com uma leitura perfeita na voz de Nei Lisboa.

Em 1988, Nei perdeu sua namorada Leila em acidente de carro. Foi um momento de crise que acabou se refletindo em seu trabalho, embora "Hein", seja um ótimo disco. O músico entrou em depressão, engordou, lançou o ao vivo "Amén" em 1993, depois ficou um tempo sem gravar, mas aos poucos foi voltando. No Século XXI, recuperou o astral e o pique com os ótimos "Cena Beatnik" (2001) e "Relógios de Sol" (2003), este último sob a influência da experiência indescritível de ser pai. Nei está em forma de novo, sob todos os sentidos, e traz na bagagem uma obra a ser descoberta por quem ainda não conhece. Sem detrimento a meus outros ídolos gaúchos, acho que ele merecia ser mais famoso do que Engenheiros do Hawaii, Nenhum de Nós e Adriana Calcanhoto juntos. Este texto não pretende ser um resumo completo de sua obra. O melhor local para saber mais sobre ele é no site oficial, clicando
aqui.

Mas o que eu ia dizendo mesmo sobre os anos 80? Ah, sim: foram muito bons. Passaram depressa, é verdade, mas deixam saudade. Foi bom me formar numa faculdade e depois começar outra, foi bom ser "atleta por um dia" (na verdade por alguns anos), ingressar no primeiro emprego, passar em concursos internos para subir na empresa, virar adulto (embora até hoje nem todos reconheçam a minha adultez), aderir ao videocassete, fazer aquela que foi talvez a minha melhor viagem aos Estados Unidos, em 1985, foi bom casar, mesmo que não tenhamos sido felizes para sempre, enfim, foi bom ser um jovem entre 20 e 30 anos. Só não foi bom perder meus pais, mas eles haviam me preparado para esse momento e eu até que lidei bem com a situação. Tudo isso ao som de Nei Lisboa e outros músicos geniais da época.

3 Comments:

Blogger Ana said...

Vim ler algo que eu não soubesse sobre o Nei Lisboa, pq adoro o seu trabalho, e fiquei sabendo de muitas coisas. Esse final de semana dediquei a matar as saudades de Porto Alegre escutando essas músicas dos anos 80, especialmente as dele, às do Júpiter Maçã, as que embalaram inícios e fins de festas da minha juventude, e a relembrar um pouquinho dessa época...Não me pergunta o porquê, mas me emocionei lendo o teu texto. De verdade. Depois de 10 anos acho que tu merece saber que teve esse alcance. Obrigada. Por compartilhar o teu conhecimento e por transmitir esse carinho pela música e por músicos especiais.

9:40 PM  
Blogger Emilio Pacheco said...

Ana, obrigado pela visita e pelos elogios. É por pessoas como você que eu me motivo a manter este blog ativo há mais de dez anos.

2:39 AM  
Blogger Baile Átha Cliath said...

Parabéns pelo texto, aprendi bastante sobre o Nei também. Não peguei essa época mas curto muito o som dele

2:07 PM  

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