quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Regras para confundir

Faz tempo que não abro um manual de redação. Ele até me seria útil para tirar dúvidas bem específicas de gramática, ortografia ou dados geográficos. Mas para me ensinar a escrever, ah, me poupe. Eu sou alfabetizado. Às vezes leio certas "normas de boa redação" e questiono sua validade. Entendo que há pessoas com dificuldade de redigir que podem se beneficiar de algumas orientações. Mas acho que a boa escrita vai além de uma camisa de força ou conjunto de macetes. Principalmente quando são repassadas ou impostas sem nenhum critério.

Por exemplo: há quem condene o chamado "gerundismo". Concordo. Essa mania de dizer "eu vou estar lhe passando os dados" ou "eu vou estar lhe pedindo algumas informações" deve ter sido inventada por algum gênio do telemarketing. Mas não se deve confundir essa construção viciosa "estar fazendo" com o emprego normal do gerúndio, que existe para ser usado. E há casos em que o "estar" é correto. Por exemplo: na semana que vem eu vou estar viajando, portanto aguarde meu retorno. Por outro lado, se eu disser que na terça-feira vou estar embarcando, aí sim, incorro em gerundismo condenável. (Eu ia escrever "vou estar incorrendo", mas notei que poderia parecer ironia. Mesmo assim, acho que seria um uso válido da construção.)

Na Faculdade de Jornalismo, um professor dizia que não se deveria escrever, por exemplo, "subiu o leite". "Não é o leite que sobe, é o preço do leite." Também outro mestre afirmava: "Está errado dizer que as lideranças sentaram para debater. Liderança não tem bunda." Ah, sim. Faltava-me, como aluno, um maior espírito contestador para questionar essa regra. Porque, a menos que algo me escape, trata-se de uma figura de linguagem chamada metonímia. É como dizer "ler Mario Quintana". A gente não lê o Mario e sim os poemas dele. A menos que a metonímia não seja aceita em linguagem jornalística. Aí o problema é outro.

Também gostaria de saber quem foi que inventou essa regra de estilo de que a voz passiva deve ser evitada (olha ela aí). Acabei de usá-la aqui mesmo e acho que o entendimento não foi prejudicado (de novo!). Isso parece modismo criado por quem não possui um conhecimento mais profundo do idioma ou, simplesmente, não tem o que fazer. Cansei de receber normas de boa redação condenando a voz passiva. Não vai muito longe: o corretor gramatical em inglês do Word acusa o seu uso em cada revisão.

Senão vejamos: se eu não souber quem realizou a ação, como vou usar a voz ativa? Em outras palavras, se eu não puder dizer "meu carro foi roubado", vou dizer o quê? "Alguém roubou meu carro." Aí virão outros ditadores de regrinhas dizer que se deve evitar o uso de "alguém". Certo. "Um ladrão roubou meu carro." Ora, se roubou só pode ser ladrão. Redundância. "Roubaram meu carro." Como assim, "roubaram"? Como saber com certeza se foram duas ou mais pessoas? "Roubou meu carro." Quem roubou? Cadê o sujeito dessa frase?

Houve uma época em que alguns jornais resolveram abolir a palavra "anos" de suas páginas. "Fulano de Tal, 29, afirmou que..." Talvez tenham lido isso no New York Times e pensado ser uma forma moderna de redigir a notícia. Só que, em inglês, é correto usar-se apenas o numeral, pois se diz que uma pessoa "é" de tal idade. Vale como adjetivo. Mas em português ela "tem" tantos anos, de forma que o número não pode ficar solto. Também se lê em entrevistas, entre parênteses: (risos). Sim, mas risos de quem? Do entrevistado? Do entrevistador? Dos dois? Se isso foi cópia do inglês "laughs", mais uma vez foi falha, pois esse "laughs" não é o plural do substantivo "laugh" e sim a terceira pessoa do singular do verbo "to laugh", ou seja: (ele) ri. E pode ter sido uma macaquice do inglês que também gerou a anomalia "Olimpíadas". Sim, "the Olympic Games" pode ser encurtado para "the Olympics", mas a Olimpíada é uma só.

Clareza e objetividade são dons que nenhum manual de redação saberá ensinar.