segunda-feira, maio 29, 2006

Duas carnes

Quando comecei a aprender inglês, um dos aspectos do idioma que me fascinaram foi a coerência. Em português dizemos, por exemplo, "não fiz nada". Ora, a rigor, se eu não fiz nada, devo ter feito alguma coisa. Em inglês se diz "eu fiz nada" (I did nothing) ou "eu não fiz coisa alguma" (I didn't do anything). A lógica chega a ser matemática de tão perfeita. Lembro de um professor que ensinava afirmações e negações em inglês com sinais de mais e menos.

Outro recurso do inglês que é bastante útil é a distinção entre substantivos contáveis e incontáveis. É algo que até poderia existir em português, não fosse a nossa mania de singularizar tudo. Em inglês, "water" é incontável. Em português, "água" também poderia ser, mas na prática a gente vai no supermercado e compra "uma água". Ou pede "uma água" no restaurante, para acompanhar a refeição. Fica subentendido que é uma garrafa de água. Assim também, "bread" em inglês é incontável. Em português, compra-se "um pão", "dois pães" e assim por diante. Já os substantivos incontáveis em inglês precisam de uma unidade de medida para serem contados: "one glass of water" (um copo d'água) e "one loaf of bread" (uma "forma" de pão, algo assim). Claro que existem em inglês substantivos abstratos que são incontáveis sem qualquer lógica: "advice" (conselho), "information" (informação ou informações) e "news" (notícia), entre outros. Esses confundem bastante os alunos brasileiros.

Apesar das características de cada idioma, às vezes faz falta em português uma distinção semelhante. Já tem gente, por exemplo, pedindo "uma frita" ou "duas fritas" no barzinho. Ou pior: "uma fritas". Também já está sacramentado o uso da palavra "software" como contável, embora não o seja em inglês. Compra-se "um software" ou "dois softwares". Mas já me aconteceu de entender mal uma expressão em português por querer interpretá-la ao pé da letra ou como deveria ser o certo.

Há muito tempo, eu e meus colegas tínhamos o hábito de almoçar uma vez por semana em uma churrascaria próxima do local de trabalho. Eles serviam espeto corrido (rodízio de carne), mas tinham também a opção de buffet. E eu observava que, no buffet, geralmente havia dois tipos de carne que também estavam sendo servidos nas mesas. O garçom oferecia o rodízio aos clientes, mas também despejava uma parte no buffet. Achei que seria uma boa opção para os dias em que eu almoçasse sozinho. No cartaz da entrada estava escrito com giz: "Espeto corrido ou buffet livre com duas carnes". Planejei voltar lá para experimentar a segunda opção.

Um dia, apareci lá e avisei ao garçom que só iria querer o buffet. Eram só dois itens do churrasco que eram oferecidos além das massas e saladas, mas eu achei mais do que suficiente. Servi-me à vontade de ambos os tipos de carne. Voltei lá no dia seguinte. E no outro. E no outro. Mas eu notava que um dos garçons me olhava meio atravessado, com cara de quem não estava gostando. No quarto ou quinto dia consecutivo, era ele quem estava no caixa. Quando foi me cobrar, me avisou:

- Da próxima vez o senhor já sabe: o buffet é livre com duas carnes. Se o senhor comer mais, teremos que cobrar espeto corrido.

- Como assim?

- O buffet é livre com duas carnes. Mais do que duas carnes, temos que cobrar espeto corrido.

Aí caiu a ficha:

- Ah, buffet livre com dois pedaços de carne?

Era isso. E ele ainda deve ter ficado indignado por eu não ter entendido algo tão fácil. Não bastasse eu ter que decifrar o real significado de "duas carnes", ainda tinha o agravante da expressão enganosa "buffet livre". Morri de vergonha, mas aprendi: na linguagem dos restaurantes populares, "buffet livre com duas carnes" quer dizer "buffet limitado a dois pedaços de carne e o restante livre".