segunda-feira, agosto 14, 2006

O fã incondicional

(Publicado originalmente no International Magazine no segundo semestre de 2001. Muito antes da existência do Orkut, portanto.)

Não existe sujeito mais chato do que o Fã Incondicional. O fato de alguém comprar todos os discos de determinado ídolo, mesmo coletâneas e relançamentos, não caracteriza necessariamente um Fã Incondicional, mas um colecionador. Melhor dizendo: um “completista”. Não: o Fã Incondicional é muito pior. É o que enxerga o Ídolo como um artista perfeito, infalível e incontestável. E quem não enxergar isso, ou é burro ou é incompetente.

Atualmente, é fácil encontrar o Fã Incondicional. Basta cadastrar-se em algum grupo de discussão da Internet. Pobre de você se esperar uma conversa ponderada, isenta, temperada por uma visão crítica. O mais provável é que você se veja soterrado por e-mails de Fãs Incondicionais dedicam suas vidas única e exclusivamente a elogiar o Ídolo. Ah, ele é lindo, gente, vocês não acham? Ele não está um gato na capa do disco Tal? E se alguém sugerir uma lista de discos preferidos, não se surpreenda: os mais recentes vão liderar a votação. Os Fãs Incondicionais não eram nem nascidos quando saíram os melhores trabalhos do Ídolo.

O Fã Incondicional se interessa por notícias altamente relevantes como, por exemplo: morreu a sogra do baterista. Gente, não esqueçam de mandar suas mensagens de condolências para o e-mail sogradobaterista@morreu.com.br. Sim, é o mesmo nome de domínio que vocês já conhecem do ano passado, quando enviaram mensagens para tiodobaixista@morreu.com.br. Passa uma semana e começa a cobrança: Fulano, Beltrano e Cicrano, vocês não vão enviar suas mensagens? Ninguém pode ficar de fora, temos que mostrar nossa solidariedade! Se não sabem inglês, escrevam apenas “my sympathies”. Não, isso não significa que a sogra do baterista era simpática!

Como já foi dito, o Ídolo é perfeito. Logo, se sair uma crítica ruim ao disco mais recente, o jornalista é incompetente. O jornal não é sério. Existe um complô para desmoralizar o Ídolo. Nenhum jornal mais presta. Ídolo forever! Abaixo o babaca que falou mal dele! E não adianta tentar argumentar que a matéria apenas apontou prós e contras. Não existem contras. Ou melhor: existem sim. Estão todos contra ele, contra nós, são um bando de preconceituosos e invejosos.

Outra notícia importantíssima: lembram do guitarrista que tocou com o Ídolo por dois meses em 1996? Ele está excursionando com uma banda própria que breve deverá lançar um CD independente. Logo vocês lerão uma entrevista exclusiva com ele. Por enquanto, recebam mais fotos do Ídolo. Sim, são todas da mesma época, todas recentes. E daí? Ele não está lindo? Se alguém tiver mais fotos para trocar é só enviar.

E atenção: nosso sócio Fulano de Tal esteve no exterior e assistiu a um show do Ídolo! Aqui vai o relato exclusivo: “Foi d+, incrível, afudê! O Ídolo simplesmente arrasou! Estava lindo como sempre e cantando como nunca! A banda também estava ótima e o público adorou! Foi um momento inesquecível não só para mim como para a platéia toda, que ficou num êxtase só! O show acabou mas nós queríamos sempre mais, mesmo depois do bis. Ele é realmente d+, foi uma experiência mágica que nunca mais sairá da minha memória. Obrigado, Ídolo!” Bem, aí está o relato de Fulano de Tal dando todos os detalhes sobre o show do Ídolo com exclusividade para o nosso grupo.

E o que vocês acharam do novo disco? Gostaria de ouvir a opinião de vocês. Eu achei maravilhoso, o máximo! O Ídolo está cada vez melhor! Gostei mais das faixas 1, 2, 3, 4 e 5. Ah, tem também a faixa 6, que é ótima! E as faixas 7 e 8 também merecem atenção. Acho que esse foi um dos melhores trabalhos do Ídolo, vocês não concordam? Junto com o último e o penúltimo, é claro. E os outros, também, todos excelentes.

Atenção, pessoal: vamos organizar um encontro. Não, não um encontrozinho qualquer. Um mega-evento. No mínimo umas 100 pessoas devem comparecer. Afinal, é para conversar sobre o Ídolo, quem vai querer ficar de fora? Se já providenciei tudo? Claro! Já mandei e-mail para todos os sites, jornais, rádio e TV avisando do encontro. Local? Transporte? Hospedagem? Isso se resolve. Importante é divulgar para que o Ídolo fique sabendo. Quem sabe ele não aparece de surpresa? (Às vezes, empresários de renome se frustram ao tentar trazer artistas que estão passando perto do Brasil. Mas um encontro de fãs vai fazer com que um astro que mora lá no outro lado do mundo vire a noite dentro de um avião, para depois pegar outro avião, um táxi, um ônibus, outro táxi, só para aparecer de surpresa na convenção. E depois percorrer o mesmo calvário no sentido inverso para voltar para casa.)

Voltando à realidade... É por essas razões todas que os grupos de discussão da Internet são para os realmente fanáticos. Esses se sentem à vontade. Os fãs casuais ou não sabem que são casuais (tem gente que pensa que é fã do John Lennon só porque gosta de “Imagine” e “Happy Xmas”), ou acabam caindo fora. Pra encerrar, mais um exemplo. O sujeito diz que gosta de tal música “apesar de ser da Carole King”. Ora, “apesar” por quê? O que você tem contra a Carole King? “Nada, é só porque não é uma música do Ídolo.” Ah, quer dizer que o que não for do Ídolo, em princípio, não presta? Queiram me excluir da lista, por favor!

2 Comments:

Blogger IDÉIAS & AÇÕES said...

Ótimo texto...gostei muito!!!
Foi na veia dos incondicionais sem ofendê-los...

3:15 PM  
Blogger Emilio Pacheco said...

Hoje identifico outros tipos e subtipos de fãs. Tem o fã "torcedor", que já comentei aqui em outro tópico. Tem também a fã "amorosa", que "ama" seu ídolo como a alguém da família, tendo por ele um carinho e dedicação exagerados que ele jamais vai fazer por merecer.

8:40 PM  

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