sábado, novembro 25, 2006

Os cata-ventos

Quem me conhece sabe o quanto eu sou obcecado por gramática e ortografia. Encontrar erros em textos alheios é algo que, dependendo do contexto, pode me irritar ou divertir. Achar erros em meus próprios textos é sempre frustrante, mas ninguém é perfeito.

No entanto, há certos tipos de erros que, conquanto não sejam necessariamente aceitáveis, seriam, digamos, perdoáveis. Ou no mínimo compreensíveis. Quantas pessoas sabem que "implicar" é verbo transitivo direto e não indireto? Em outras palavras, que não se diz "implica em", apenas "implica", sem preposição? Quem na prática observa a diferença entre "em vez de" (em substituição a) e "ao invés de" (ao contrário de)? A rigor, o singular de "caracteres" é "caráter", mas o uso já consagrou "caractere". "Visar" no sentido de "ter o objetivo de" é sucedido da preposição "a". Quantos a colocam? Quem pronuncia corretamente palavras como intuito e circuito, com ditongos decrescentes e não crescentes (que, se assim fossem, precisariam de acento agudo no "i")? Já me disseram que "buquê" só se usa para vinho tinto, enquanto o vinho branco tem "frutada", mas nunca pesquisei para confirmar.

Antes de prosseguir, quero reiterar que não considero nenhum desses erros aceitáveis. O que eu quero dizer é que, se alguém os comete, não me transmite necessariamente uma imagem de pessoa ignorante ou despreparada.

Em geral, a época em que começamos a atentar para esses detalhes é quando nos preparamos para o vestibular ou algum outro concurso. Comigo não foi diferente. Sempre gostei de português, mas foi no terceiro ano do segundo grau, tanto no colégio quanto no cursinho, que aproveitei para tirar todas as minhas dúvidas e "afiar" o meu uso da linguagem. Mas o aprendizado é constante. Faz pouco tempo que aprendi, por exemplo, que "ressuscitar" se escreve assim, com "sc".

Alguns alunos, quando descobrem certos detalhes de ortografia e gramática que desconheciam, ficam verdadeiramente fascinados. E aí, passam a observar quando encontram deslizes que antes lhes passavam despercebidos. Uma integrante do Orkut quis saber por que o primeiro livro de Mario Quintana se chamou "Rua dos Cataventos" e não "Cata-ventos", como seria o correto. "Por que será que ele colocou no poema sem hífen? Precisava saber se ele falou sobre isso em alguma entrevista", indagou, preocupadíssima, a jovem estudante. Aí, começaram as especulações. Reforma ortográfica, talvez? Não, não foi o caso. Um dos participantes da discussão sentenciou:

Gente! Na poesia a gramática está subvertida ao poeta. Se fosse um livro de prosa, seria um erro.

Ah, sim: a famosa licença poética. Por que não? Seria uma explicação tentadora para justificar o que parece ser um erro cometido pelo grande poeta. No entanto, não é o que me pareceu. E expus minha opinião:

Para Quintana, isso não representava nada, provavelmente. Deve ter morrido sem saber que errou a grafia da palavra. E se alguém lhe avisou, deve ter dito "ah, mas eu acho mais bonito assim" e esqueceu o assunto. Claro que, para quem estuda para vestibulares e concursos, é importante saber que palavras compostas em que a primeira é um verbo sempre têm hífen. Inclusive, há uma explicação bem divertida para "vaga-lume". É que esse "vaga" na verdade não vem de "vagar", vem de "*agar", mesmo, "*agar luz". Daí o hífen. Mas esse é um erro tão comum que provavelmente só é notado por professores de português e alunos mais aplicados. Sem querer iniciar uma discussão acadêmica, não acho que seja uma "licença poética". Quintana errou, mesmo. Mas foi um erro perdoável.

No fundo, quando escrevi que não queria iniciar uma discussão acadêmica, devia saber que era isso mesmo que iria provocar. Ora, Quintana errando? Quem sou eu para dizer isso? A resposta não tardou (acompanhada de um e-mail para que eu não deixasse de lê-la):

"Quintana errou" ? Caro Emílio, para algo que viria a ser o título de sua obra publicada em 1940 (escrito na capa do livro), duvido muito que tenha sido um erro. Ao contrário do que muitos pensam devido a simplicidade de seus versos, Quintana não era nenhum leigo em relação a gramática. Inclusive a partir de 1934, Quintana traduziu livros de diversos escritores estrangeiros como Fred Marsyat, Voltaire, Virginia Woolf, Papini, Maupassant e, até mesmo, Marcel Proust. Algumas dessas traduções obtiveram tanto sucesso que continuam sendo reeditadas. Ele trabalhou traduzindo obras para o português até perto de morrer. Sinceramente, prefiro ficar com a opção de licença poética.

Da forma como essa resposta foi redigida, até parece que eu não conheço a biografia de Quintana. Ou que não sei o que é licença poética. Quintana usou-a diversas vezes. Ele gostava, por exemplo, de subverter as normas de pontuação, iniciando palavra com letra minúscula após um ponto de exclamação:

"Ah! sim, um lepidóptero!"

"- Mas há as compreensivas...
- Ah! essas são muito piores!"

Já percebi que mexi com um vespeiro ao questionar a infalibilidade de Mario Quintana. E é, sim, uma discussão acadêmica. Mas já que eu a iniciei, não vou abandoná-la. A grafia correta de "cata-ventos" me parece um segredo tão bem guardado entre gramáticos e concorrentes ao vestibular que eu continuo achando que Quintana errou, mesmo. Aliás, o uso do hífen é o que mais confunde até mesmo os bons escritores. Enfim, fui sutilmente considerado ignorante por ousar dizer que o grande Quintana, o infalível Quintana, o perfeito Quintana, escreveu "Cataventos" por desconhecimento e não por licença poética. Mas é o que eu penso.