segunda-feira, janeiro 12, 2009

Ainda a reforma ortográfica

Eu sempre presumi que as pessoas a favor da extinção de acentos gráficos fossem as que nunca aprenderam a usá-los. A motivação de quem apoiava reformas ortográficas era somente a de ter menos dificuldade na hora de escrever. Pois na terça-feira da semana passada tive uma surpresa ao ler a coluna de Moacyr Scliar na Zero Hora. O gaúcho "imortal" da Academia Brasileira de Letras publicou o que segue:

...o trema, para alívio da maioria, já era. Aliás, se eu tivesse de fazer algum reparo ao acordo, seria a limitação deste: só mexe com 0,5% das palavras. Deveria mexer muito mais, sobretudo no que se refere a acentos. Já se disse que foi a Inglaterra que conquistou o mundo, e não Portugal, porque os ingleses não precisavam perder tempo acentuando palavras – nem se interrogando acerca de quando usar a crase, que tanto confunde nossa gente: na dúvida, o brasileiro acaba craseando tudo para não dar vexame.

Quero acreditar que o grande Scliar não está advogando em causa própria. Logo ele, renomado cronista e romancista, não haveria de ter problemas com a ortografia. Como ele deixa subentendido ao citar "nossa gente", sua preocupação é com o povo. O pobre brasileiro já enfrenta tantas dificuldades e ainda tem que passar pelo martírio de saber acentuar corretamente as palavras. Pois vamos simplificar a vida de uma população tão sofrida! Extingamos os acentos!

Por mais que eu respeite Moacyr Scliar, não consigo concordar. O risco de ser a favor dos acentos é parecer que se quer manter uma situação de superioridade. "Já que eu sei acentuar corretamente e você não sabe, que os acentos permaneçam, para que eu continue me sentindo melhor do que você!" Mas não é isso.

Como eu sempre digo, o português tem lógica. O trema, por exemplo, cumpria uma função importante. Ele só era usado nos casos em que poderia haver dúvida sobre a pronúncia ou não do "u". Alguém tem dúvida de que o "u" é pronunciado em palavras como guarita, água, quociente e quatro? Óbvio que não! O "u" sempre é pronunciado em sílabas como gua, guo, qua e quo. Logo, nesses casos, nunca haveria trema. Por outro lado, em sílabas como que, qui, gue e gui, cada caso é um caso. Como saber quando o "u" é pronunciado ou não nesses casos? Antes, tínhamos o trema. Agora, não temos mais nada.

É por isso que eu questiono a tese da "simplificação". Será mesmo que ficou mais simples? Fazendo uma comparação com futebol, que é um assunto de que o brasileiro comum entende muito bem, extinguir o trema foi como dispensar os times de usar uniforme. Já imaginaram a bela confusão que seria se os 22 jogadores entrassem cada um vestido de um jeito? Pois o trema era a camiseta do time do "u" pronunciado nas sílabas que, qui, gue e gui. Se o pretexto da "simplificação" continuar vigorando em futuras reformas ortográficas, breve o português terá virado uma pelada.

Scliar menciona ainda a questão da crase. Na verdade, quando se fala em "extinguir a crase", o que se quer dizer é abolir o acento grave que a indica. Se fôssemos realmente extinguir a crase, passaríamos a escrever "aa" em expressões como "volta aa escola", "chegarei aas dez horas", "refiro-me aaquele outro caso" e assim por diante. Sabe lá se não serviria para que as pessoas finalmente entendessem o fenômeno. "Aaaaaah, então a crase era iiiiiiisso", diriam alguns, colocando a mão na cabeça. Mas o mais provável é que causasse ainda mais confusão. O que muitos querem, e Scliar aparentemente defende, é mesmo a extinção do acento grave. A rigor, continuaria havendo a crase, ou seja, a junção dos dois aa num só. Apenas inexistiria o acento como um dedo apontando para dizer: "tem outro a escondido aqui atrás".

Hoje eu já não acho impossível que o acento grave para indicar crase venha a ser extinto um dia. Mas, se acontecer, será mais do que uma mudança ortográfica. Será a vitória da preguiça mental sobre a coerência. Entendo que a norma culta da língua possa oferecer dificuldades num país tão vasto e heterogêneo como o nosso. Mas será que isso é pretexto para que se eliminem regras que, para quem as entende, se mostram lógicas, válidas e, mais do que isso, necessárias? Os acentos gráficos não são a única dificuldade demonstrada pelo povo brasileiro em relação ao português. Como eu já disse em outra ocasião, o método de ensino é que deveria ser revisto. Decorar macetes não leva a nada. Acho temerário começar a abrir precedentes em nome da simplificação. Corre-se o risco de chegar numa reforma como a que eu propus em agosto de 2005 no meu texto "
Abolição das regras". Mas eu estava apenas sendo irônico, viram? Sempre é bom frisar.