segunda-feira, novembro 15, 2010

Quando o prestígio fala mais alto

Existem situações em que o prestígio fala mais alto do que qualquer fato ou manobra. Em 1978, numa época em que não existia Internet, o público de Porto Alegre foi surpreendido por uma inesperada manchete: morria o Papa João Paulo I, apenas um mês após sua nomeação. Mas somente o jornal Zero Hora trazia a informação. O horário em que a notícia chegou à redação permitiu ao veículo da RBS dar um verdadeiro furo de reportagem. Nenhum dos concorrentes fazia qualquer citação ao ocorrido.

Aí é que veio a reação do público: o Correio do Povo, na época ainda pertencente à família Caldas, tinha uma inabalável tradição de credibilidade. Se o carro-chefe da Caldas Júnior não veiculava a notícia, seria ela mesmo verdadeira? E, assim, a redação do velho Correio foi inundada de telefonemas pedindo confirmação. O Papa tinha morrido mesmo? Tinha. O Correio apenas não teve tempo de incluir a notícia em sua edição daquele dia. A Zero Hora podia ter dado o furo, mas o Correio teve sua reputação endossada. Enquanto o tradicional jornalzão em formato standard não confirmou o fato, os leitores ficaram em dúvida. Até hoje os jornalistas que trabalhavam no Correio nessa época lembram com orgulho desse episódio. A vitória deveria ter sido da ZH, mas o concorrente levou a melhor com a manifestação dos leitores.

Corta para 2010. Kleiton e Kledir são anunciados como o show de abertura para Paul McCartney no Beira-Rio. Em geral a escolha é bem recebida, mas alguns xiitas protestam. Sem perceber que o próprio Paul é um músico eclético que já gravou quatro CDs de música erudita, esses radicais afirmam que a dupla gaúcha não combina com um "show de rock". Logo outras vozes dissidentes se fazem ouvir, redigindo longas diatribes contra os irmãos Ramil. Em geral esses textos mostram desconhecimento da obra da dupla, calcando-se somente em argumentos estreitos e inflexíveis. "Eles serão vaiados", exageram uns e outros.

A apenas dois dias da grande noite, a decepção: a apresentação de Kleiton e Kledir é cancelada sob a alegação de "problemas técnicos". O que exatamente aconteceu ainda não se sabe. A primeira informação foi de que se tornou inviável montar um show de abertura sem prejudicar a logística da banda de Paul. Em suma, a produção não queria show de abertura. Os xiitas, é claro, regozijaram-se. Sentiram-se vitoriosos em suas manifestações preconceituosas e radicais. E tudo parecia conspirar a favor deles quando, pontualmente às 15 pras 8 da noite, teve início um show de abertura não anunciado com o DJ Pic Schmitz, o guitarrista Fred Mentz e o saxofonista Vinicius Neto, da banda Dublê. Ou seja: a desculpa de "não querer show de abertura" era furada. Kleiton e Kledir, que estavam com suas famílias no Beira-Rio para ver Paul, poderiam ficar numa situação constrangedora.

Mas não ficaram. Quem estava bem à frente, junto ao palco, ouviu uma pequena multidão gritando "Klei-ton e Kle-dir" na batida de "We Will Rock You", do Queen. Isso foi registrado pelo jornalista do Estadão e, para os descrentes, está devidamente comprovado no vídeo abaixo. O público deu o seu recado. A exemplo do que aconteceu com o Correio do Povo em 1978, o prestígio falou mais alto. Se alguém tentou puxar o tapete da dupla, a plateia não deixou. E os irmãos saíram engrandecidos, com a alma lavada, mesmo sem ter se apresentado.


3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Grande Emílio,
Demais ! Demais !
Kleiton e Kledir continuam no coração de todos nós, foram êles que abriram a "foice e a martelo",
o mercado para a nova música urbama de Porto Alegre e de nossa Estado. Regras e conceitos sociais
foram mudados por K & K ; antes viviamos inquietos , depois olhamos a bombacha e o chimarrão como uma coisa natural e, que podíamos usá-la também na cidade.Furo de reportagem! ISTO É JORNALISMO! PARABÉNS! by /necão

9:55 AM  
Blogger Emilio Pacheco said...

Obrigado, Necão, mas não é exatamente um furo de reportagem. O jornalista do Estadão já tinha registrado esse fato e não fui eu quem fez aquele vídeo. Abração!

6:26 PM  
Anonymous Anônimo said...

Querido Emílio, não importa ; a tua sensibilidade é que vale mais e o teu carinho pela história da música de Porto Alegre...para mim continua sendo um "furo" pela tua coragem e dinâmica de assistir a Paul Maccanudo, naquele beira Rio lotado de emoções, e ter vivenciado uma das maiores noites de arte em nosso solo urbano.
Que Deus te abençoe sempre e também a tua família.
Um abraço é pouco / by Necão

11:12 AM  

Postar um comentário

<< Home