quinta-feira, julho 16, 2015

Aniversário de uma derrota marcante

No jogo de estreia do Brasil na Copa 70, quando a Tchecoslováquia abriu o placar, ouvi minha mãe dizer: "Quem faz o primeiro gol, perde." Tenho a vaga lembrança de ter escutado essa afirmação mais vezes e não só dela. No caso daquela partida, a profecia dela se concretizou: nossa seleção venceu por 4 a 1. Mas de onde ela teria tirado essa crença? Hoje, acho que sei: da Copa de 1950.

Nesta data, 16 de julho, faz 65 anos que o Brasil perdeu a Copa para o Uruguai por 2 a 1 em pleno Maracanã recém inaugurado. Há quem considere inadequado chamar àquela partida de "final", pois a fórmula daquele campeonato não era o tradicional funil, com oitavas, quartas e semifinais. Mas, pelos resultados que foram acontecendo, daquele jogo sairia o campeão. E tudo indicava que seria a Seleção Brasileira, que jogava pelo empate e vinha realizando uma campanha espetacular.
O gol de empate de Schiaffino, para o Uruguai.

A vitória pareceu ainda mais próxima com o gol de Friaça, em pouco mais de um minuto do segundo tempo, fazendo 1 a 0 para o Brasil. Se o empate bastava, a vantagem agora era ainda maior. Mas o Uruguai conseguiu o que parecia impossível: virar o escore. Aos 20 minutos, Ghiggia cruzou para Schiaffino, que atirou para marcar e empatar. Por fim, faltando apenas 11 minutos de disputa, o mesmo Ghiggia atirou a gol, quase sem ângulo, e selou o destino do Brasil. O impacto foi tão marcante que é sentido até hoje, mesmo por quem nem era nascido, como é o meu caso. Já se escreveram livros sobre aquele momento histórico. Max Gehringer, autor de uma série de e-books sobre todas as Copas até 1994 ("A Grande História dos Mundiais"), indica "Anatomia de Uma Derrota", de Paulo Perdigão, como "a melhor referência" e "possivelmente o melhor livro sobre futebol já escrito no Brasil". Perdigão tinha 11 anos em 1950 e assistiu aos jogos da Copa com seu pai.

Faz tempo que li a obra de Paulo Perdigão em sua edição original de 1986, da L&PM Editores. Um conto do mesmo autor – reproduzido integralmente no livro – foi adaptado pelo cineasta gaúcho Jorge Furtado em seu curta-metragem "Barbosa", sobre o goleiro brasileiro naquela Copa. No caso, Perdigão imagina-se viajando no tempo para invadir o campo na hora H e impedir a vitória uruguaia. No filme, o personagem foi vivido por Antônio Fagundes. Prédios antigos do centro de Porto Alegre serviram de pano de fundo para representar o Rio de Janeiro de 1950. No desfecho, o protagonista consegue se aproximar do gol no momento exato e sua presença distrai Barbosa, facilitando o gol de Ghiggia. Um enredo bastante familiar para quem lia gibis do Super-Homem: o viajante ao passado, em sua intenção de mudar a história, acaba se tornando ele próprio o causador do fato que pretendia evitar.

Entre muitas análises, pesquisas e entrevistas, "Anatomia de Uma Derrota" inclui o que era, na época da publicação, uma preciosidade: a transcrição praticamente completa da narração de Brasil x Uruguai da Copa 50 pela Rádio Nacional. Hoje, graças à Internet, podemos ouvir essa gravação no YouTube (ver abaixo). Foi o que fiz, acompanhando pelas páginas do livro de Perdigão. O escritor informa ter omitido "comerciais, informações sobre a partida Suécia x Espanha (que se desenrolava concomitantemente em São Paulo) e passagens não alusivas ao jogo propriamente dito". Confrontando-se o texto com a narração, nota-se que ficaram de fora chamadas de Brahma Chopp, registros do placar e tempo de jogo "pelo meu Omega", observações repetitivas e, como apontado, intervenções sobre a partida de São Paulo. Considerando a tarefa hercúlea a que o autor se propôs – foram 90 minutos de narração para transcrever – é até admirável que eu tenha achado apenas um erro: quando o narrador elogia Schiaffino aos cinco minutos do segundo tempo, dizendo "notável esse meia-direita do Uruguai", no texto aparece "meia-esquerda".

O jogo foi narrado por Antônio Cordeiro e Jorge Curi, cobrindo respectivamente o lado esquerdo e o direito do campo, do ponto de vista das cabines. Talvez os especialistas em futebol se estarreçam com o fato de que eu não consigo distinguir as duas vozes. É como eu me sinto quando ouço alguém dizer que não identifica os vocais de Roger Waters e David Gilmour no Pink Floyd, ou de Paulo César e Renato em Renato e Seus Blue Caps. O que chama a atenção é que os narradores se limitam a descrever o jogo quase todo o tempo, fazendo mínimos comentários e observações. Talvez agissem assim por não existir ainda televisão, que estava quase chegando ao Brasil. A missão de transmitir a partida era exclusiva deles.

Num exercício de imaginação, fico pensando como teria sido a narração pelos padrões atuais. No gol de Friaça, ouviríamos: "O Brasil está mais perto da taça! O Brasil vai ser campeão!" No gol de Schiaffino: "Agora tudo igual! Mas o empate ainda serve para o Brasil! A taça ainda é nossa!" Reconheça-se que o narrador da Rádio Nacional fez a observação, sem muita ênfase: "Empatada a peleja, aumentada portanto a emoção." Mas não mais do que isso. No gol de Ghiggia, os radialistas de hoje diriam: "Agora o jogo ficou dramático para o Brasil! A Seleção tem onze minutos, onze minutos dramáticos, para tentar o empate!" E a cada investida do ataque brasileiro, escutaríamos: "Quem sabe agora o gol de empate, o gol que irá salvar o Brasil!" Eles sentiam euforia por dentro, mas não era extravasada ao microfone. Prova disso é o testemunho de Friaça para o livro "Dossiê 80", de Geneton Moraes Neto (ano 2000, Editora Objetiva): "A emoção [de fazer o gol] foi tão grande que só me lembro de uma pessoa que veio me abraçar: César de Alencar, o locutor." No caso, Friaça refere-se ao repórter da Rádio Nacional que ficava atrás do gol, como se ouve na gravação. "Naquela confusão, ele entrou em campo e me abraçou. Nós dois caímos dentro da grande área." Isso ajuda ainda mais a entender a tristeza de Alencar ao final da transmissão, como ficou registrada no áudio.

Como sempre ocorre em derrotas traumáticas, houve tentativa de achar culpados e o surgimento de lendas. Segundo os próprios jogadores, um dos fatores prejudiciais foi a mudança do local da concentração de uma casa adaptada no bairro de Joá para o Estádio de São Januário. Na sede do Vasco da Gama, a delegação ficou exposta a caçadores de autógrafos, políticos em campanha (era ano de eleição) e toda a sorte de curiosos e aproveitadores para atrapalhar seus treinos. Outro suposto dificultador foi a orientação do técnico Flávio Costa de que todos jogassem com disciplina e lealdade, para evitar expulsões, faltas perigosas ou pênaltis. Segundo Geneton Moraes Neto em seu livro (com base em depoimento de Juvenal), a recomendação do treinador "intimidou os jogadores que, numa situação normal, não teriam dúvida em dar entradas duras nos jogadores uruguaios, em lances decisivos". Um momento de abalo moral durante o jogo teria sido uma suposta bofetada do capitão do Uruguai, Obdúlio Varela, em Bigode. O lateral esquerdo passou a vida toda desmentindo, dizendo que foram somente uns tapinhas na nuca, o que era confirmado por seus colegas e até pela narração da Rádio Nacional. Ainda assim, foi muitas vezes chamado de covarde por torcedores, por não ter revidado a alegada agressão.
O gol de Ghiggia. Bigode leva a mão à cabeça.

Finalmente, haveria culpados em campo? Os dedos quase sempre apontavam para o lateral Bigode e o goleiro Barbosa, que teriam falhado no gol de Ghiggia. Alguns citam também o zagueiro Juvenal, que deveria dar cobertura a Bigode. Os próprios jogadores, com o apoio da maioria dos colegas, se defendem, dizendo que a derrota foi de todos. O que aconteceu, especificamente, é que Ghiggia recebeu um lançamento em profundidade de Júlio Perez na ponta direita. Barbosa imaginou que ele iria repetir a jogada do primeiro gol, cruzando para Schiaffino, e moveu-se levemente para a direita, preparando a cobertura. Bigode, que corria em vão para tentar alcançar o ponteiro, fez o seguinte relato a Geneton Moraes Neto: "Eu ainda dei combate a Ghiggia – que, no desespero, chutou de qualquer maneira, sem ângulo. Chegou a chutar a grama." Em uma edição atualizada do livro de Geneton, o uruguaio afirma que atirou de caso pensado, numa decisão tomada em "milésimos de segundo" ao ver a brecha deixada pelo goleiro. O escritor Paulo Perdigão chama a atenção para o "tom alarmante de voz" tanto de Jorge Curi da Rádio Nacional como de Pedro Luiz da Rádio Pan-americana ao narrar o gol. A mim pareceu que, ao menos no caso de Curi, ele estava fazendo uma "narração atrasada" e o desespero ao dizer "aproxima-se do gol e atira" é porque a bola já estava balançando a rede.
Barbosa, goleiro da Seleção Brasileira.

Não existem imagens completas do jogo, somente um filme com alguns lances, incluindo o gol de Ghiggia. Com base nas informações registradas de que dispomos hoje, não me parece que tenha havido algum segredo, alguma causa misteriosa a ser desvendada. O Brasil perdeu... porque havia essa possibilidade. A comemoração antecipada do título foi um erro muito mais no sentido do vexame que isso significou do que em eventuais influências em campo. Uma queixa comum aos jogadores de 50 é que só eram lembrados pela derrota para o Uruguai. Eram vice-campeões, tinham diversos títulos acumulados, mas todos só falavam no chamado "Maracanaço". O estigma os atingiu de tal forma que, dos onze titulares, somente Bauer foi convocado para a Copa seguinte, em 1954. Todos eles já faleceram. No ano passado, quando a Seleção foi massacrada pela Alemanha em casa, a filha de criação de Barbosa, Tereza Borba, sentiu uma pontinha de redenção em relação a seu pai, lembrando que ele foi vice-campeão.
Um lado bonito da história que raramente é lembrado é que vários jogadores brasileiros e uruguaios ficaram amigos. Depoimento de Ghiggia a Geneton Moraes Neto: "O que aconteceu foi que muitos não acreditavam que tínhamos uma amizade de irmãos. Visitávamos uns aos outros com frequência. Estive com Zizinho, com Jair, com Ademir. Éramos muito amigos. Quando íamos ao Brasil, eles nos recebiam. Quando eles vinham ao Uruguai, nós os recebíamos." E mais: "Já estive no Brasil várias vezes. Sempre encontro quem me cumprimenta e me parabeniza. Sempre que vou ao Brasil, vou com tranquilidade e alegria, porque os brasileiros são muito carinhosos." Há alguns anos, um repórter da Globo tentou caçar uma manchete perguntando ao ex-jogador uruguaio se poderia pedir desculpas ao povo brasileiro. Isso seria patético e desnecessário. Ghiggia não mordeu a isca. Ele é o único sobrevivente da partida com o Brasil. Está com 88 anos. [P.S.: Por uma coincidência incrível, como observou Italo, frequentador deste Blog, Ghiggia faleceu nesta tarde.]

É claro que ainda há testemunhas vivas do 16 de julho de 1950. Gente que, no mínimo, ouviu o jogo pelo rádio. É o caso de Luis Fernando Verissimo, que escreveu um conto sobre um torcedor que entra em coma antes dos gols do Uruguai e assim permanece por vários anos. Quando acorda, todos ficam apreensivos em lhe contar o placar final. Como Verissimo colaborava com programas humorísticos da Globo, é possível que essa historinha tenha servido de inspiração para o quadro "me tira o tubo", de "Viva o Gordo", em que Jô Soares vivia um político recém acordado de um longo coma em meados dos anos 80. Ao ver que os tempos tinham mudado com a abertura, num impulso suicida, pedia que lhe tirassem o tubo. 

Enfim, aprendemos a lição de 1950? Em parte. O brasileiro continua cantando vitória antes do tempo. Em tudo, não só no futebol. Mas tenho a impressão de que conseguimos lidar melhor com as grandes decepções no esporte. Não com as pequenas: em todas as vezes que o Brasil caiu fora da Copa de forma corriqueira, a reação da torcida era de raiva pelo mau desempenho dos jogadores. Mas não senti isso no torneio da França em 1998, em que a Seleção foi novamente vice-campeã. Nem no vexame dos 7 a 1 em casa contra a Alemanha no ano passado. Tristeza, sim, mas não a gana das outras vezes.

Abaixo, a narração da Rádio Nacional:

2 Comments:

Anonymous Italo said...

Um dia depois da tua postagem, morreu o Ghiggia. Que coincidência hein!

Excelente postagem-reportagem, muito bem escrita, parabéns Emílio!

10:44 PM  
Blogger Emilio Pacheco said...

Obrigado. Coincidência mesmo. E não foi no dia seguinte, foi no próprio dia. Postei de manhã bem cedo.

11:17 PM  

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